O dia em que Machado de Assis invadiu a aula de línguas – Nosso Idioma
Anos atrás, quando ainda estava na pós-graduação, apresentei um trabalho intitulado “Como conciliar os verbos transitivos com minha paixão intransitiva por Machado de Assis”.
Os colegas gostaram do jogo de palavras, mas não estou certa se, à época, compreenderam a extensão do meu drama. Sendo treinada em literatura brasileira e portuguesa, na qual me doutorei, foi com certa relutância que me tornei uma professora de língua portuguesa, em tempo integral.
Não que minha língua materna não me agradasse. Muito ao contrário. Sempre tive grande interesse por ela. Em minha primeira carreira, como jornalista, trabalhei alguns anos como revisora e, mais tarde, como editora. Adorava o desafio de brincar com as palavras, de fazê-las dizer o máximo com o mínimo. Mas sentia que, como professora de língua estrangeira, não empregaria em meu dia a dia profissional o que, afinal, me preparei tanto tempo para fazer: interpretar textos literários e enredar meus alunos nessa arte fascinante.
O fato é que, com o passar do tempo, com anos de prática e investigando novas ferramentas de ensino da língua, me dei conta que seria possível incorporar meus longos anos de aprendizado ao ensino de português como língua estrangeira e, melhor, com muitos benefícios.
Saí em busca de trabalhos que fundamentassem minha intuição. Ao princípio, havia pouca coisa nessa área. Por isso fui experimentando na prática, no cotidiano da sala de aula, um procedimento muito simples que se tornou crucial para meu trabalho: o uso de textos autênticos, em que a gramática, tão misteriosa, se revelasse de forma natural e dentro de um contexto definido, que contudo permitisse ao aluno ir além dele. Os contos, as crônicas, as narrativas que fazem parte da literatura luso-africana-brasileiraofereciam o que mesmo os linguistas mais tradicionais admitem ser de suma importância: o texto autêntico.
Para os que ainda creem que ficção não pode ser categorizada como tal, é tempo de repensar sua postura. Hoje, felizmente, já é possível encontrar no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos trabalhos que fundamentam essa realidade tão simples: não há experiência sem narrativa e nada melhor do que histórias para ensinar sobre uma cultura. As leituras, desde que bem orientadas e selecionadas, podem começar já nas turmas de base e de forma gradual ir se tornando mais complexas.
Duas das minhas turmas, uma de terceiro e outra de quarto semestre, já leram Clarice Lispector, autora que mesmo no Brasil intimida alguns leitores. E, agora, quando pensarem em pretérito imperfeito vão talvez visualizer a menina Clarice de “Felicidade Clandestina”. E, sim até mesmo o mestre Machado de Assis, minha grande paixão, já se sentou em minhas aulas de língua e lhes asseguro que, apesar da ironia mordaz, o bruxo do Cosme Velho se comportou exemplarmente. Eu recomendo!
*Selma Vital é atualmente Lector de Português na Yale University. Já ensinou português na Washington University in St Louis, no Union College e na University of Illinois, onde também se doutorou em 2009. Em 2012, publicou “Quase brancos, quase pretos: questões étnico-raciais no conto machadiano” (São Paulo: Intermeios). Além de ensinar português, Dr. Vital traballha no projeto de um livro sobre a jornalista americana-brasileira Corina Vivaldi Coaracy.