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“O Brasil que não vem nos livros tem que ser vivido” – Nosso Idioma

Estou a começar a fazer as malas depois de dois meses no Brasil, e, apesar de querer muito voltar para casa e abraçar a minha pequena família, é um momento em que dá aquele aperto quando algo bom acaba. Tenho muitas coisas para escrever, contar, lembrar. Tive muita sorte, vim com um grupo de estudantes fantásticos da Universidade de Yale, muito curiosos, excelentes observadores e charmosos. Eles fizeram amigos por onde passaram e entregaram-se completamente e com entusiasmo ao processo e à imersão – e funcionou, eles estão a falar muito bem. Aprendi tanto quanto ensinei, e o Brasil é um país com muitas nuances para aprender.

Na UNESP de São José do Rio Preto encontramos uma greve dos estudantes e um campus ocupado, o que nos criou alguns problemas logísticos, mas proporcionou tantas oportunidades de diálogo, de entender como se defende um ponto de vista no Brasil, de explorar técnicas de negociação e comunicação. Foi fantástico. Tanto os alunos quanto os professores da UNESP foram uns “companheiraços” que nos acolheram e foram criando oportunidades para nós os conhecermos melhor e participarmos da forma como eles vivem o Brasil. As crianças e adolescentes dos projetos, escolas e faculdades que visitamos, os empresários e os intelectuais com quem falamos receberam-nos com uma franqueza fácil, engajaram os alunos sem filtros, proporcionando momentos e trocas que ficam conosco. Houve coisas inacreditáveis que aconteceram, como o convite do prefeito de Palestina para visitarmos a cidade, que nos recebeu com fanfarra e uma Festa de Reis, que tanto me lembrou as Festas dos Reis ou dos Rapazes de Trás-os-Montes, e nos levou à cachoeira do Talhadão e ao Teatro Caipira. Quando na praça principal, em frente da população, o prefeito me deu a bandeira da cidade, e eu sabendo o significado desse momento, fiquei sinceramente emocionado. Para as pessoas da cidade, foi uma surpresa que nós tivéssemos algum interesse neles e na realidade que vivem, mas para nós a riqueza humana daquela comunidade era tão clara e tão digna do nosso apreço. Esta generosidade com quem vem de fora, esta naturalidade no partilhar-se com quem chega é uma coisa que me é muito familiar por ter crescido em Portugal, mas, para os meus alunos, poder ver com os próprios olhos e ter esta experiência foi uma aprendizagem cultural que não vem nos livros.

São Paulo recebeu-nos com os maiores protestos que o Brasil já viu desde o movimento “Diretas já!”. Não vou dizer que não me preocupei um pouco pela segurança dos alunos, mas montei um plano alternativo, e foi extraordinário estar na cidade naquele momento histórico. Além disso, a oferta cultural de São Paulo é excepcional e muito variada, mas infelizmente só tivemos uma semana para conhecer a cidade. Além disso, fiquei bastante doente e cheio de febre durante uns dias, mas os estudantes exploraram todos os principais museus e pontos da cidade. Na capital paulista, tive ainda a oportunidade de rever bons amigos, de me encontrar com colegas que também trabalham nos EUA, fazer amigos novos e de conhecer pessoalmente amigos com quem já trabalhei online, mas que não conhecia fisicamente. Foi uma massagem ao coração, daqueles encontros em que nós próprios nos encontramos e tudo parece natural, parece que estivemos juntos ontem e que nos vamos voltar a ver amanhã, porque estamos todos em sintonia. Tivemos ainda a oportunidade de visitar a escola de línguas Torre de Babel, que simpaticamente nos deixou invadir o banheiro, que tem uma vista magnífica sobre a Avenida Paulista. São Paulo é um mundo em que muito ficou por explorar, e isso ficou muito claro quando subimos ao último andar do Edifício Itália, o segundo edifício mais alto do Brasil. Dali temos uma vista de 360 graus sobre a interminável cidade e pudemos ver tudo o que não tivemos a oportunidade de conhecer. Fica no ar uma futura visita com mais tempo para ir a todos esses lugares.

O Rio de Janeiro é um deslumbramento. Os morros altos que saltam dos lados das lagoas às vezes parecem braços enormes que se estendem da terra para o céu para dar um abraço à cidade, outras vezes parecem-se com as pontas dos dedos de uma mão gigante que segura a cidade na sua palma. Em qualquer dos casos, ficamos conscientes da nossa pequenez neste mundo imenso. O Rio de Janeiro é uma cidade muito carinhosa, e a nossa universidade anfitriã não foi exceção; a PUC-RJ é também muito bonita. Há dois lindos conjuntos de edifícios baixinhos que foram originalmente as habitações dos operários que trabalhavam numa fábrica local, e que agora, preservados, alojam os departamentos académicos. Quando chegamos à universidade, parece que os edifícios emergem do morro que fica por detrás, e a forma como a floresta que ocupa o coração da universidade, o rio que atravessa o campo universitário e os edifícios se entrelaçam, fazem do local uma eterna surpresa, a cada curva, ao dobrar de cada esquina, no entrar em cada canto a vegetação muda de forma surpreendente.Ouvimos a água escorrer preguiçosa e temos a sensação de estarmos numa pequena aldeia ou vila. É um lugar ideal para estudar, é um lugar fácil, mas são sobretudo as pessoas que rapidamente se transformam em amigos, é o jeito fácil e relaxado dos cariocas que não se afligem facilmente e resolvem tudo na calma e com um sorriso que nos envolve. Claro que o Rio de Janeiro não podia ficar atrás, e à falta de uma greve ou de um protesto, mandaram vir do Vaticano o maior inconveniente ao nosso programa, mas até isso acabou por servir como um momento de aprendizagem.

Aqui, encontrei professores de português como língua estrangeira num encontro na livraria da SBS e foi uma satisfação falar com pessoas que partilham os nossos desafios e as nossas preocupações. Também conheci amigos que conhecia só das redes sociais, e ainda por cima acompanhado com um cabrito assado fabuloso no restaurante Nova Capela, na Lapa. Vale a pena. Fui almoçar com duas ex-alunas de quando trabalhava na Columbia University, num almoço que se prolongou para um cafezinho e acabou em jantar num boteco. Foi quase constrangedor ver no Rio de Janeiro alunos que vieram para a minha aula inicial sem saber uma palavra, e que agora trabalham na cidade. Acima de tudo, foi um renovado sentido de responsabilidade no que faço, pela clareza do impacto nas vidas dos jovens que passam pelas minhas aulas.

No dia em que cheguei ao Rio de Janeiro, o Brasil jogava com a Espanha a final da Copa das Confederações. O motorista deixou-me em Copacabana sozinho, com duas malas, em uma rua deserta, nem uma pessoa nem um carro. De repente, o Brasil marcou o segundo golo e de todas as janelas abertas, de todas as portas e de todas as outras ruas vibrou no ar um grito coletivo de toda uma cidade que celebrava. Foi um momento indescritível que nunca vou esquecer. No entanto, foi a nossa visita à Vila Olímpica da Maré que vai ficar para sempre comigo. Nesse dia, o mundo ficou um pouco mais absurdo para mim. Visitei com os alunos este projeto social magnífico na Comunidade da Maré, que ocupa os tempos livres de crianças e jovens com desportos e artes. Quando entramos vi um cartaz que dizia “Você é uma pessoa muito magra?”. É um programa que todos os dias alimenta 300 crianças subnutridas da comunidade. Talvez seja por eu ser pai há pouco tempo, mas tenho que confessar que a ideia daquelas crianças passarem fome me perturbou profundamente. Também não consigo imaginar a angústia de um pai que não consegue alimentar o seu filho. Pensar em não ter com que alimentar a Lucinda é aterrador para mim. Não pude deixar de pensar na reportagem de uma revista norte-americana, que há uns anos perguntava “Quem alimenta o mundo?” e a resposta era “O Brasil”, o maior exportador de comida do mundo. Como é que conciliamos estas duas realidades? Como conciliar esta realidade com o problema de obesidade infantil e juvenil nos EUA? O mundo é ilógico e absurdo. Deste projeto social saíram MC Naldo, um funkeiro reconhecido internacionalmente; Davi do Nascimento, que foi aceito na Escola do Teatro Bolshoi e foi o único do seu ano a ser contratado pelo Balé Bolshoi na Rússia, no final do curso; além de atletas muito bem posicionados para entrar na equipa olímpica brasileira. Não consigo deixar de pensar no capital humano desperdiçado nas outras comunidades sem esta estrutura. Não consigo deixar de pensar na vida de todas as crianças que projetos como este nunca vão tocar, nos Mandelas, Bethanias, Mozarts, Niemeyeres, Pradas, Lispectores, Saramagos, etc. que nunca vamos conhecer. Esta experiência foi muito importante para me recentrar e para me fazer refletir sobre as minhas prioridades e as minhas escolhas.

Entre greves, protestos e a visita do Papa, este programa foi muito completo. Em São José do Rio Preto tivemos a experiência do sudeste rural, uma terra de campos de cana de açúcar e seringueiras de bois e capivaras, em que as pessoas queriam tirar fotos conosco e pediam autógrafos com uma alegria eletrificante, só por sermos nós e estarmos com eles. São Paulo foi uma experiência urbana intensa, uma cidade nervosa e sofisticada, em que as pessoas olhavam para nós nas ruas e cochichavam, talvez ainda não habituadas a ver estrangeiros pelas ruas, ou pelo menos pelas ruas por onde andamos. Já no Rio de Janeiro o ritmo acalmou, as distâncias diminuíram, e a cultura da praia, mesmo em pleno inverno carioca, entrou nas nossas rotinas, e fizemos tudo isso no mais profundo anonimato, com os muito cosmopolitas cariocas acostumados a visitantes de todo o mundo, nem olhando duas vezes para nós. Agora, em 24 horas começa o meu caminho de regresso, e já tenho saudades de tantas coisas. Vamos ver como correm as coisas no aeroporto. Vai ser uma aventura, o meu avião amanhã sai à mesma hora do avião do Papa…

Até breve, Brasil.

Luis Gonçalves Princeton University Membro do Conselho da AOTP

* Foi preservada a escrita do autor, que é natural de Portugal.

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